“Fiquei com vergonha de dizer não”
Depois da polêmica matéria da Capricho na qual um colunista “iluminava” as jovens detalhando quais meninas, segundo os homens, seriam “para ficar” e quais “para namorar”, a revista ressurgiu com um relato que causou burburinho nas esferas feministas: uma menina referida como C. compartilha sua traumática primeira vez, aos 15 anos, confessando que o rapaz “forçou a barra” e ela “ficou com vergonha de dizer não.”
Segue o relato:
Cedendo a provável pressão, a revista publicou uma errata, dizendo que “não incita ou estimula que garotas ou mulheres façam sexo sem vontade ou que se rendam à pressão de seus pares” e que a lição do post é: “não faça nada contra a sua vontade” ou “tenha coragem de dizer não – ou você pode se arrepender para sempre”.
Apenas em ler o relato, os mais atentos não precisarão de quaisquer elucidações a respeito do porquê das feministas terem criticado alarmadas. A polêmica, que poderia girar em torno de ter sido ou não estupro, entra em uma nociva contradição: todos notam que não foi consensual, mas nem todos solidarizam-se com a suposta vítima – pelo contrário, em alguns casos, a vítima é posta como única e verdadeira culpada de seu próprio sofrimento.
Com os comentários tirados da matéria – com os quais essa foi iniciada – evidenciamos irrefutavelmente um conceito muito, muito presente no vocabulário feminista anti-cultura do estupro: o incoerente e inconsequente slut shaming.
O slut shaming surge como um dos reflexos mais nocivos da sociedade ainda notadamente patriarcal na qual estamos inseridos: é porta voz da cultura do estupro; o responsável por sua disseminação e naturalização. Ser mulher em uma sociedade patriarcal significa ter que se enquadrar em uma série de padrões pré-concebidos e estar sob constante policiamento de terceiros. Sim, policiamento. O conceito de slut shaming é abrangente, assim como a sua manifestação – indo de sua forma mais sutil (embora não inofensiva) a mais direta e profundamente perniciosa. Ele está presente nos discursos que tentam justificar uma violência sexual, culpabilizando a vítima.
“Usava roupas curtas demais, estava pedindo para ser estuprada.”
“Andando na rua à noite, sozinha, ninguém mandou.”
“Seu decote estava grande demais.”
“Estava bêbada demais.”
“Ela é uma periquete mesmo.”
E, finalmente:
“Ninguém mandou convidar o moço para ir a sua casa, o que ela esperava?”
É preciso que se analise e se entenda a gravidade desse tipo de discurso. O quanto ele serve para perpetuar e normalizar o estupro. O quanto a própria sexualidade da mulher é usada contra ela: usada como desculpa para submetê-la, subjugá-la, humilhá-la e contrariar suas vontades.
O slut shaming condena toda e qualquer ação feminina a ser dependente da reação masculina: a mulher é obrigada a se oprimir e se esconder porque, quando faz o que quer, dá brecha e justificativa para que dela seja tirada toda a autonomia e dignidade.
Suas vontades não importam quando ela, supostamente, provoca a reação sexual masculina. (Eis aqui uma das contradições para os homens que adotam esse tipo de discurso: todos os homens seriam, por acaso, incapazes de conter seus desejos sexuais e/ou intenções? Seriam incontroláveis e plenamente insensíveis e indiferentes às reciprocidades em uma relação? Não sabem reconhecer o certo do errado?).
Roupas curtas demais não dão o direito de homem nenhum violar uma mulher. Roupas curtas não são um convite a sexo – roupas curtas representam, simplesmente, a vontade da mulher de usá-las. Não se deve dizer à mulher como ela deve se comportar, deve ser ensinado aos homens como respeitá-las, sempre. Comportamento nenhum desencadeará para a mulher a obrigação de ter relações sexuais.
Enquanto um lado do machismo poda a sexualidade feminina, o outro a “hiper-sexualiza” para benefício próprio. E é nisto que reside a importância de combater a objetificação da mulher em propagandas e no dia-a-dia. Tudo isso é a raiz da cultura de estupro.
Usando uma frase tirada de um relato feminista:
“O estupro é um dos filhos bastardos do machismo. Bastardo porque deste herda os traços, mas não o reconhecimento. O machismo veste muitas cores, muitas modas, muitos nomes. O machismo é a nossa crítica à saia curta e ao decote; […] o machismo é árvore de muitos galhos.”
Essa foi a gravidade do relato publicado pela revista Capricho. A menina conta que “tentou conter a empolgação”, mas o menino “forçou a barra”. E ela teve vergonha de dizer não. Vergonha porque, provavelmente, ela mesma reproduziu um discurso machista ensaiado por tantas outras bocas: não percebeu que ela não tinha obrigação de negar, ‘mesmo’ tendo o convidado para a sua casa. Não percebeu que ela não tinha a obrigação de submeter-se a uma vontade masculina; a possibilidade de pedir para não fazer o que não queria a constrangeu.
A revista, lida por tantas adolescentes, fez entender que foi ruim porque não teve romantismo, porque não foi como ela esperava, enquanto mascara uma verdade clara: foi ruim porque não foi consensual. Se não foi consensual, foi estupro. E por isso foi traumático. E por isso a C. chorou e carregou o estigma durante 2 anos, até superar com um novo namorado.
A verdade é que a C. não precisava ter verbalizado negativa alguma. Ela sinalizou que não queria e, qualquer insistência do rapaz depois disso, deve ser devidamente condenada. Ela tentou “conter sua empolgação” e ele não se importou e não parou. Improvável que ele não tenha percebido, improvável que não tenha sido claro que ela estava constrangida e desconfortável com toda a situação. A Capricho, ao invés de contar que o que o menino fez foi errado, que se acontecer algo parecido com qualquer outra menina deve ser denunciado imediatamente, normaliza a situação.
Em Belo Horizonte, em um bar, bêbada, uma moça foi coagida a ficar com um cara, em meio a gritos de “beija! Beija!” espalhados por todo o recinto. Ela reagiu. Tomou uma surra. Foi jogada no chão, teve seus dentes quebrados por ter recusado. Ninguém fez nada.
Em Curitiba, Tainá, de 14 anos, foi estuprada, torturada e morta por 4 homens, no caminho de casa.
Nos morros, nas comunidades, na Zona Norte, Sul, Leste, Oeste, nos becos, nos bares, nas casas… Quantas, quantas mulheres…
Na Capricho, estupro é falta de romantismo. Para a Capricho, a menina deve arrepender-se para sempre por não ter tido coragem de dizer “não”. O menino não teve culpa por ter “forçado a barra”, o menino não teve culpa por não ter se importado, perguntado, por não ter parado. A covardia é dela, a culpa é dela.
Quantas agredidas, quantas embriagadas, quantas “Tainá”s e quantas C.s ainda serão necessárias para pôr abaixo a cultura de estupro, para soerguer a consciência coletiva? Quanta sororidade, quanta compaixão, quanta humanidade para pôr abaixo o slut shaming?
A C. pode ter tido vergonha, mas agora gritamos por ela: NÃO passará. Cultura de estupro, não passará. Desfavor jornalístico normalizando o estupro desde a pré-adolescência? Não passará.
Não existe “mulher pra ficar” e “mulher pra namorar”, Capricho. Não, não existe sexo não consensual, não existe sexo traumático que vá ser normalizado e esquecido após uma segunda vez “mais romântica”.
Existe, sim, o machismo, a violência contra a mulher, a opressão. Não seria necessário vocês corroborarem com esse discurso – que não só é propagado como é vigente. É normativo, é consenso. Para os que ainda escolhem submeter a grilhões ao invés de libertar, aturem de volta o nosso sonoro ‘não’.
Porque existe a liberdade do corpo da mulher, existe autonomia. Existe o direito de uma menina convidar um rapaz para ir a sua casa sem ter a OBRIGAÇÃO de ter relações sexuais com ele. Existe o direito de negar, de mudar de ideia, de fazer o que se quer.
Para toda a mídia e toda pessoa que escolher perpetuar o patriarcado opressor, a objetificação da mulher e a cultura de estupro, estaremos aqui com o “não” da C. na ponta da língua.
Autor Lorena Robinson
Revisado por Amanda Pr
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